domingo, agosto 01, 2004

O que poderia ser o início de um livro e nunca foi...

Como dizer-lhe que não queria mais? Que aqueles movimentos tão ocos de sentimento lhe causavam uma sensação de enjoo, tão vazios que eram de significado... Queria libertar-se da futilidade em que caíra, mas que era tão viciante... não conseguia, já tantas vezes o tentara antes, tantos insucessos, estes quase já tão ocos como os próprios movimentos.
Pedro chorava, não que caissem lágrimas dos seus olhos, mas por dentro mais um pouco se partia, se afogava. Relembrava com saudades os velhos tempos em que soubera o que era amar, em que vivera essa emoção. Sentia agora como se não soubesse mais amar, como um adolescente que descobre o próprio corpo, que encontra a sua alma. Alma? Como esta perdera o seu sentido pelo tempo, gasta em tantos desamores, esvaída de cor, de sonhos, aqueles sonhos que mantêm vivo o ser. Não é que não sonhasse, sonhava! Mas mesmo estes sonhos pareciam ser em tons de sépia, antigos como o próprio corpo que os continha.
Acordou com o barulho do telefone, aquele som que nos rouba de um espaço quase espiritual, sem objectos, sem forma ou consistência. Atendeu, do outro lado uma voz metálica sua conhecida, era a mãe "Pedro ainda a dormir a estas horas?" perguntou-lhe ela com um tom quase de castigo. "Mãe estive a trabalhar até tarde, não me chateies tá bem?", "Pronto, pronto, que bom humor... realmente és igualzinho ao teu pai!". A ironia e reprovação contida nas palavras saturavam-no, cansado desta monotonia repetitiva, sem graça. Desde que se separaram que o Pedro não aguentavam estar muito tempo com qualquer um dos pais, fartava-se das constantes acusações agudas que lhes saíam boca fora, até porque quando se cansavam de se acusarem um ao outro viravam-se para ele, que falta de paciência... Era por este motivo que pensava cada vez mais que nunca haveria de casar. Não que na realidade este facto fosse muito provável, sendo bissexual sempre tivera mais tendência para sentir-se atraído pelo corpo masculino, e como tinha saudades de estar protegido em braços fortes. Fazia hoje três anos que estava sozinho, três anos em que soubera, naquele fatidíco dia, da traição do Miguel. Nunca tinha chorado tanto como nesse dia, lembrava-se de ter chegado à faculdade e ao encontrar a Cátia, sua amiga desde do primeiro ano do seu curso de línguas contemporânes, agarrou-se a ela e chorou. Demorou cerca de vinte minutos até se acalmar sentido-se irritado pela demonstração de emoções que acabara de viver em pleno bar da faculdade. Pouco se importava, já antes tinha aguentado a má lingua e sabia bem como se defender. Tinha acabado o curso há um ano, mas nunca conseguira esquecer este dia. Ainda hoje Pedro sentia que esta ferida estava aberta, havia ainda muita mágoa e aprendera que o ditado estava errado, o tempo não cura tudo e nem todas as feridas podem ser fechadas. Percebera que estas feridas eram, por vezes, o que nos fazia sentir vivos, relembrar-nos a nossa condição humana. "Pedro???", durante minutos a mãe falara e ele não ouvira uma só palavra, também não se importava "mãe, ligou-lhe depois" e desligou, sem esperar por uma resposta.
Agora acordado na sua cama pensava como havia de terminar a relação "colorida" que mantinha com o João, não que esta não fosse agradável ou que o João não fosse uma pessoa especial, mas não aguentava mais esta situação, estava cansado de não construir nada, de não avançar. Queria assentar, queria um futuro ao lado de alguém que fosse mais do que um corpo deitado na sua cama, queria... tantos sonhos que afinal ainda existiam por realizar. Sentia neste momento que não iria levar esta situação por muito mais tempo, não iria aguardar, como tantas vezes o fizera, por uma chamada que dissesse "vem ter comigo, tenho saudades tuas". Sabia, como sempre o soubera, que isto significava satisfazer as carências do João e, pela primeira vez em muito tempo, respondeu "Não!".

1 comentário:

Filipe de Sousa disse...

pois... afinal há muitas coisas que herdaste de mim... inclusive a capacidade literária de dizer a verdade a mentir... não acho que seja um processo osmótico, mas seja como for não há-de estar tão longe disso... tenho pena do Pedro... mas acho que fazia bem se estivesse quieto, acabasse com as amizades coloridas e mandasse passear a familia e os amores... o amor é metafísico e ponto!